Salinas, a terra sagrada da cachaça, está em um ponto decisivo da sua história. Com a conquista de um selo de Indicação Geográfica, concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) na semana passada, e com um grande investidor chegando à cidade com cacife para mudar o rumo da produção local, pode ter chegado a hora de as
Sertão de Salinas: território de cachaça boa
marcas salinenses ganharem o mundo. Por outro lado, há riscos que não podem ser desprezados quando falamos de uma cidade que, há 60 anos, vem produzindo alguns dos melhores exemplares do precioso líquido brasileiro.
Senão, vejamos: muito se discute sobre a pertinência de se afirmar que a cachaça, assim como o vinho, também carrega para a garrafa a marca do seu terroir – que passso a chamar de “território”. A mim, não obstante a consciência dos muitos perigos e exageros gananciosos que existem na aplicação de tal termo, seja para vinhos ou para cachaças, a consciência obriga a dizer que não tenho dúvida que, sim, os diferentes territórios podem marcar as características de diferentes cachaças.
Na cachaça, o território se impõe por duas vertentes. A primeira vem do ar, da terra e das águas de cada local, que levam organismos e diferentes linhagens de leveduras muitas vezes encontradas apenas em determinadas regiões para o vinho e cujo sabor pode sobrevive na cachaça. Os químicos podem explicar esse processo; eu, enquanto devoto, apenas aprecio e atribuo valores mágicos a esse processo, toda vez que ele dá certo.
Outra forma de território é a que tem origem na geografia humana. Certos métodos de produção, alguns usos e costumes até mesmo insólitos, preferências na forma de preparar o fermento, a escolha de madeiras para o envelhecimento, os tempos de descanso, a graduação alcoólica , os níveis de acidez… enfim, existem características que vêm sendo mantidas e compartilhadas não raramente por décadas a fio por grupos de produtores de determinados territórios.
Isso não descarta a beleza que há na especificidade de cada cachaça, nas particularidades que produzem a identidade única que é, provavelmente, a principal característica dos melhores néctares.
Digo isso tudo porque quero chegar num fato: as cachaças de Salinas têm, em sua maioria, marcas compartilhadas: a preferência por sabores mais picantes, uma graduação alcoólica mais generosa que o conjunto geral formado pelas melhores cachaças de todas as procedências e métodos de fermentação bastante tradicionais. Quanto aos produtores, são gente de fazenda, que lida com a terra há décadas e mantém seu foco na produção, e não “no mercado”.
Isso tem feito a glória da cachaça daquela cidade mineira onde estive há duas semanas, como convidado do evento que a qualidade de sua produção permite que eles denominem Festival Mundial da Cachaça sem que isso pareça tão cabotino.
Já visitara aquela cidade há cinco anos, quando das filmagens do doc. Devotos da Cachaça. Ali, entre outras grandes figuras, tive a honra de entrevistar dois produtores icônicos do universo cachacístico: Osvaldo Santiago, filho de Anísio, pai de Roberto, que nos recebeu na Fazenda Havana, e Antônio Rodrigues, lendário proprietário da Seleta. Os dois mestres mostraram duas facetas da produção local: a persistentemente artesanal (de cerca de dez mil litros por ano, no alambique da Havana/ Anísio Santiago) e a milionária (então, de mais de dois milhões de litros anuais e crescendo, na fábrica da Seleta, Boazinha e Saliboa).
De 2007 para cá, alguns produtores emergiram (a Tabua é o caso mais marcante), mas não houve mudanças estruturais no universo da cachaça de Salinas. Mas, agora, elas começam a acontecer com a atuação do senhor Carlos Andriani, um especialista em gestão egresso de Campinas que há dois anos vem atuando em Salinas.
Andriani comprou uma marca com mais de cinquenta anos de história – Indaiazinha –, se associou aos produtores da Tabua para atuar na gestão comercial daquela marca e adquiriu direitos sobre outras cachaças tradicionais de Salinas.
Tal associação pode ser benéfica para todos os lados. Um modelo de produção mais profissional, o surgimento de novos produtores com cacife para gerar muitas centenas de milhares de litros por ano de cachaça de alambique, com o devido corte da cabeça e da cauda e outros cuidados essenciais, é necessário a um possível salto na venda interna e, sobretudo, para enfrentar o desafio da exportação do produto. E, para isso, claro, novos métodos de gestão precisam ser adotados.
O risco é que modelos industriais de produção e de marketing se imponham sobre aquilo que é mais importante: a arte da alambicagem, os métodos tradicionais e específicos de produção de certos fabricantes e de determinadas regiões, os pequenos segredos baseados mais na observação empírica e na experiência do contato diário com a terra e seus frutos do que no conhecimento científico.
Esse amplo universo, um tesouro da cultura brasileira estabelecido por produtores excepcionais como o mestre Sabino Pinto, das cachaças Sabinosa, Brinco de Prata e Preciosa, precisa ser preservado.
No melhor dos mundos, a variedade característica do universo cachacístico se manterá. Que cachaças sejam produzidas para atender a todas as demandas. Que branquinhas puríssimas (as quais não podem ser dadas à luz aos milhões por ano) e envelhecidas ao estado da arte (com o vagar da vida interiorana) convivam com outras marcas de artesania menos refinada produzidas às centenas de milhares sem perder qualidades essenciais – coisa que é perfeitamente possível. E que a grande produção industrial siga atendendo a determinados mercados com suas cachaças de custo reduzido. Enfim, que a cachaça não encareça e não piore!
Riscos existem em todos os processos. Esperemos que os salinenses saibam manter o imenso patrimônio que construíram e que lembrem-se do exemplo de outras cidades que perderam a sua reputação por não apostarem na qualidade.
Aumentar a produção ou não ou mudar métodos de venda, tudo bem. O que há de se preservar é a arte da alambicagem. E a julgar por uma nova marca que provei lá em Salinas – a excelente Pelicana – e pela nova safra da Anísio Santiago, com a qual brindei com Roberto o centenário de seu avô, Anísio, isso ainda está preservado.
P. S: Ao Seu Sabino, da Sabinosa, fica aqui o agradecimento pela recepção fidalga em sua fazenda a mim, ao Fernando Porto, ao Cesar Fraga e ao Marcelo Arroyo. O muito obrigado se estende ao pessoal da Apacs, a associação de produtores de Salinas, que nos levou para a maratona cachacística – do Rio, fomos eu e Manuel Agostinho Lima, autor do livro Viagem ao mundo da cachaça. O presidente e acidentado Nivaldo Gonçalves e o vice-presidente e ex-seminarista Lucas Mendes formam uma linha de frente antenada e digna de crédito na administração do processo de evolução da cachaça de Salinas.
P.S 2: Lenir Costa e Rosário Alcazar, produtoras do doc. Devotos da Cachaça, também estiveram em Salinas, confraternizando com os produtores locais e ajudando a espalhar os DVDs do Devotos da Cachaça. Você já tem o seu? Não? Então, peça aqui.